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Invisíveis, mas por todos os lados
Por que fazer uma reportagem sobre "alguns" autismos?
Bemfica de Oliva e Pedro Victor Gomes
Segundo relatório de 2018 do Centro para Controle de Doenças (CDC, na sigla em inglês), órgão do Ministério da Saúde dos Estados Unidos, estima-se que uma a cada 59 crianças esteja dentro do espectro do autismo. Para a Organização Mundial de Saúde, em 2017, a estimativa era de uma a cada 160 crianças. Apesar de os Transtornos do Espectro do Autismo (TEA) atingirem parcela tão significativa da população, e de o debate sobre o tema ter avançado muito nos últimos anos, porém, ainda há grupos de autistas que sofrem pela falta de representatividade.
Mulheres, por exemplo, possuem estereótipos sociais que dificultam o diagnóstico: as dificuldades de socialização enfrentadas por pessoas com o transtorno, por exemplo podem ser encaradas como uma suposta “timidez natural feminina”, atrasando e por vezes impedindo o reconhecimento enquanto autistas. Pessoas de baixa renda também possuem profunda dificuldade no acesso a diagnóstico e acompanhamento, tanto pela falta e subfinanciamento de instituições especializadas em TEA que atendam pelo Sistema Único de Saúde (SUS) quanto por muitos dos traços definidores do autismo serem considerados “frescura”, causando grande sofrimento destas pessoas por terem sintomas negligenciados. Para além disso, parcela da população ainda entende o autismo como algo que deve ser “tratado” com isolamento da sociedade, e não com inclusão, fazendo com que grande número de autistas acabe tendo que sobreviver sem adaptações para conviver em igualdade de condições perante pessoas neurotípicas (não-autistas). Mesmo com o diagnóstico, direitos destas pessoas são negados, e por vezes até desconhecidos.
Como o lugar-comum sobre a feminilidade afetou o diagnóstico e afeta a vida de uma mulher autista? Como pessoas de baixa renda podem ter atendimento quando o SUS encerra o convênio com uma entidade que atendia quase 500 famílias? Como pessoas autistas podem praticar esportes e ter momentos de lazer, sem serem isoladas em casa ou em instituições? Quais são os passos a serem tomados após o diagnóstico? Para responder estas e outras perguntas o especial Autismos Invisíveis coloca em discussão pontos importantes, mas que não são abordados com frequência quando se debate o tema do autismo.
Diversão (nada) invisível
Entidades organizam eventos de lazer para pessoas autistas e suas famílias
Pais e filhos que estejam procurando um contato maior com as praias de Fortaleza podem procurar o projeto TEA (MAR), organizado pela Associação Fortaleza Azul, em parceria com o projeto Humanáuticos. Para Ticiana Moreira, coordenadora do projeto e neuropsicóloga, a iniciativa visa “proporcionar saúde, bem-estar, qualidade de vida e inclusão social” através de aulas de Stand Up Paddle (SUP) para crianças autistas. Adolescentes e adultos, entretanto, também podem participar.
Respeita-se o tempo de cada pessoa e as demandas que são trazidas para a aula. “O objetivo é adaptar cada um, respeitando o tempo e as possibilidades", segundo Delano Pinheiro, proprietário do Ceará SUP Club.
Localização: Próximo ao Mercado dos Peixes, em frente ao Edifício Trapiche.
Horário: Todo sábado e domingo, a partir de 8 horas.
Duração da aula: 30m ~ 1h
A associação Fortaleza Azul não oferece apenas essa atividade para o público autista. Realiza também visitas às escolas, atividades de lazer como cinema e teatro, esportes como o já citado stand up paddle e dança, além do acolhimento às famílias que recebem o diagnóstico. Em abril, o Mês Mundial da Conscientização do Autismo, a Associação realizou o espetáculo musical "Azul da Cor do Mar - Uma Sinfonia Diferente" no Teatro Via Sul. Através da musicoterapia, a Associação pode tratar de temas como o acolhimento, a informação e o apoio entre os familiares e pessoas com autismo, além de oferecer uma válvula de escape.
Também no mês de abril deste ano, a Associação Pintando O SeTEAzul realizou sessões de cinema exclusivas para crianças autistas. O diferencial da sessão é fazer com que as crianças sintam-se à vontade. A iluminação e o áudio são adaptados, para que os pequenos possam se movimentar, sob as vistas dos pais. Vale a pena, então, ficar atento a estas programações especiais e no resto do trabalho das associações.
As sessões de cinema adaptadas são recorrentes na cidade. A própria Fortaleza Azul já organizou no shopping Riomar Kennedy a exibição do filme Os Incríveis 2 em uma sessão com características específicas para as necessidades do público infantil autista. A sessão conta com escuridão parcial, som mais baixo e também com livre movimentação das crianças.
Reportagem por Pedro Victor Gomes
Sou autista, e agora?
Confira o passo a passo do diagnóstico (ou da suspeita) à reivindicação dos seus direitos
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Infográfico por Bemfica de Oliva
Perfil: Ana Karynne Magalhães
Ela descobriu ser autista quando buscou um diagnóstico para a filha. Agora também luta por direitos e reconhecimento.
Ana Karynne, mãe, 35 anos, nos recebeu em sua casa fazendo bolo com a filha. A garota ajudava ela com os ingredientes, passeando pela cozinha e conversando com a gente. Era uma tarde típica para duas pessoas que eram vistas como típicas pelo resto das pessoas. Enquanto separava os ingredientes, Karynne me explicava sobre como o diagnóstico tardio do autismo afetou sua vida.
"Eu tinha uma frustração com os cursos superiores. Era muito fácil entrar neles, mas não conseguia ficar. Qualquer mudança de rotina era apavorante..."
O diagnóstico tranquilizou Karynne sobre o que antes ela não entendia sobre si. Hoje em dia, se encontra afastada do meio acadêmico. Chegou a ser questionada pelo coordenador do seu curso se ela não estaria assumindo uma demanda grande demais, sendo convidada por ele até a sair da faculdade. O fato de Karynne não ter se ofendido já poderia servir como um indicativo de seu futuro diagnóstico de Asperger
Mas a faculdade não é o único lugar onde ela sente dificuldades em permanecer. Karynne odeia aglomerado, o que já descarta idas ao shopping ou lugares parecidos. Ela trava, solta até o que está segurando na mão. É o que ela me descreve como sobrecarga sensorial.
O Asperger não delimita o campo cognitivo de Karynne, pelo contrário. Ela me conta que faz Enem todo ano por diversão, mesmo sem pretensões de cursar. Para dirigir, chega a calcular mentalmente as distâncias ao redor do carro. Para resolver dilemas pessoais, às vezes faz uso de algoritmos e outras operações matemáticas. Seu marido fica admirado com essa capacidade de abstração.
Mas capacidade de abstração pode ser algo que Karynne admite não ter quando o assunto é conversar. Para alguns amigos, ela é uma "sincerial killer". Se acostumou a perguntar diretamente se a intenção das pessoas é ser engraçada, por exemplo. Mas nem sempre a entendem bem, o que não chega a incomodar Karynne. Está acostumada a navegar por conversas atípicas.
Sua filha entra no meio da câmera o tempo todo, conversando comigo e os outros membros da equipe. A conversa com as duas fluia muito bem e eu me encantava com o modus operantis delas dentro de casa. Na ida ao mercado, Mariana repara em um erro ortográfico na fachada. Erro esse que nossa equipe demorou para enxergar, mas se tratava de um acento circunflexo que não estava lá. Não se tratam de duas pessoas descoladas do mundo pelo seu autismo, mas sim integradas a ele de jeitos que nem podemos perceber.
A internet tem um forte papel na vida de Karynne. “O e-commerce para pessoas autistas é a salvação”, diz ela sobre sua loja de bonecos. Como treino, ela também responde os directs e organiza algumas postagens do instagram da Casa da Esperança. Mas segue reafirmando ser péssima lidando pessoalmente com os outros.
A rotina é uma questão delicada. “São muitas telas azuis”, diz Karynne em referência à tela de erro do Windows. “Toda vez que eu repassava minha lista, meus fluxogramas e algoritmos a resposta era só uma: não tô dando conta. Meu marido ficou rindo de mim uma pessoa chorar e ao mesmo tempo elaborar um algoritmo pra ter certeza de que eu não tô dando conta.”
Karynne acorda às cinco e meia da manhã, alimenta as gatas, toma café, acorda Mariana pra escola, deixa na escola, vai pra academia - o que lhe causa uma ansiedade social terrível por conta do contato com muitas pessoas -, vai pra casa, organiza o almoço, vai buscar Mariana pra escola e à tarde faz as atividades que ela já programou. Já às terças e quintas elas vão para a Casa da Esperança, onde Karynne acompanha diversos tipos de atividades. Voltando pra casa, ela prepara o jantar da Mariana, que dorme cedo, e Karynne aproveita para trabalhar, desenhar, responder e-mail e preparar as atividades pro dia seguinte. No fim do dia, vai ler. Esse é o eterno hiperfoco dela, que às vezes deixa de dormir. Ela já teve outros hiperfocos não tão saudáveis, como jogar MMORPG, mas a maternidade a curou disso.
Hiperfoco, segundo ela, é quando você precisa saber absolutamente tudo sobre algo e isso te causa dor. Parar o que você tá fazendo, seja ler ou jogar video-game, pode ser doloroso. Em momentos que está sobrecarregada, Karynne reserva para não fazer nada. Segunda-feira à tarde é o que ela chama de dia da disfunção executiva.
Pergunto se ela consegue lidar com uma casa cheia de estímulos internos e externos. Ela diz que consegue muito bem, mas precisa de um sono longo para recarregar as energias.
O modo como a sociedade enxerga o autista é através do estereótipo de quem não conversa, não olha no olho e que precisa de ajuda pra realizar várias atividades, mas Karynne se recusa a ser apenas um estereótipo. Ela é uma boa companheira, uma mãe disposta e paciente e consegue tocar vários projetos pessoais.
Reportagem por Pedro Victor Gomes